sexta-feira, 23 de março de 2007

Sepse


Bicho acuado...


Chorei...
Derramei do coração que já estava pequeno, sangue.
Quando percebi o teu medo, chorei...
Dormi, viajei , regressei. Voltei para ti.
Voltei para mim, e em te vi o desespero.
Naquele momento em que os olhos passavam não tive medo ,embora escondido
Por ti temi!
Ali chorei
Aqui estou: entristecido, desamparado, desolado...
Choro ao lembrar de ti, por mim,
Um bicho acuado.
È assim que experimento o sabor das pessoas...

Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade.
Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem brilho questionador e tonalidade inquietante.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero a resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Louco que senta e espera a chegada da lua cheia.
Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só ombro ou o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. (...)
(...) Meus amigos são todos assim:metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Pena, não tenho nem de mim mesmo, e risada, só ofereço ao acaso.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte deaprendizagem, mas lutam para que a fantasia não deasapareça.
Não quero amigos adultos, nem chatos.
Quero-os metade infância metade velhice.
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, evelhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril".

Fernando Pessoa





Clarice Lispector

Lucidez perigosa.

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum:é uma lucidez vazia, como explicar?Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise.Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.E nem entendo aquilo que entendo:pois estou infinitamente maior que eu mesma,e não me alcanço.Além do que:que faço dessa lucidez?Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano- já me aconteceu antes.Pois sei que - em termos de nossa diáriae permanente acomodação resignada à irrealidade -essa clareza de realidade é um risco.Apagai, pois, minha flama, Deus,porque ela não me serve para viver os dias.Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.
Eu consisto,eu consisto,amém.

Leitores...


Lúcia Santaella

Fora e além do livro, há uma multiplicidade de modalidades de leitores. Há o leitor da imagem, desenho, pintura, gravura, fotografia. Há o leitor do jornal, revistas. Há o leitor de gráficos, mapas, sistemas de notações. Há o leitor da cidade, leitor da miríade de signos, símbolos e sinais em que se converteu a cidade moderna, a floresta de signos de que já falava Baudelaire. Há o leitor espectador, do cinema, televisão e vídeo. A essa multiplicidade, mais recentemente veio se somar o leitor das imagens evanescentes da computação gráfica, o leitor da escritura que, do papel, saltou para a superfície das telas eletrônicas, enfim, o leitor das arquiteturas líquidas da hipermídia, navegando no ciberespaço.
Em vez de discorrer sobre cada uma dessas modalidades, escolhi uma outra rota classificatória e histórica ao mesmo tempo. Percebi que por trás dessa multiplicidade, há três tipos ou modelos de leitores. Trata-se de uma tipologia que não se baseia na diferenciação dos processos de leitura em função das distinções entre classes de signos ou espécies de suporte desses signos, mas toma por base os tipos de habilidades sensoriais, perceptivas e cognitivas que estão envolvidas nos processos e no ato de ler, de modo a configurar modelos de leitor, como se segue:
1. O primeiro é o leitor contemplativo, meditativo da era pré-industrial, o leitor da era do livro e da imagem expositiva. Esse tipo de leitor nasce no Renascimento e perdura hegemonicamente até meados do século XIX. 2. O segundo é o leitor do mundo em movimento, dinâmico, mundo híbrido, de misturas sígnicas, um leitor filho da revolução industrial e do aparecimento dos grandes centros urbanos, o homem na multidão. Esse leitor, que nasce com a explosão do jornal e com o universo reprodutivo da fotografia e cinema, atravessa não só a era industrial, mas mantém suas características básicas quando se dá o advento da revolução eletrônica, era do apogeu da televisão. 3.O terceiro tipo de leitor é aquele que começa a emergir nos novos espaços incorpóreos da virtualidade. Vejamos cada um desses tipos em mais detalhes.
Antes disso, no entanto, vale dizer que, embora haja uma sequencialidade histórica no aparecimento de cada um desses tipos de leitores, isso não significa que um exclui o outro, que o aparecimento de um tipo de leitor leva ao desaparecimento do tipo anterior. Ao contrário, não parece haver nada mais cumulativo do que as conquistas da cultura humana. O que existe, assim, é uma convivência e reciprocidade entre os três tipos de leitores acima, embora cada tipo continue, de fato, sendo irredutível ao outro, exigindo inclusive habilidades perceptivas, sensório motoras e cognitivas distintas.

Existencialista



Meu Deus, me dê a coragem. Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,todos vazios de Tua presença.Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude.Faça com que eu seja a Tua amante humilde,entrelaçada a Ti em êxtase.Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.Faça com que a solidão não me destrua.Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.Receba em teus braços o meu pecado de pensar.